Longe de casa
Cristiano e eu andávamos pelas fileiras, enquanto o via mexendo nas coisas das prateleiras. Olhava uma coisa ou outra com seus binóculos enquanto dávamos passos preguiçosos de um lado para o outro. O dia estava chuvoso, como já era de costume ao clima dali. Um dia pode fazer um sol escaldante pela manhã, e poucos minutos depois cair uma chuva torrencial pra depois fazer sol novamente, isso quando todos esses fenômenos não aconteciam de uma só vez.
Estava acomodada ali tempo suficiente para entender tudo isso. Vivia naquele pacato lugar há pouco mais de uma semana. E nesse período, tive uma tranquilidade tão aterradora que até tinha esquecido qual era meu intuito principal em estar naquela cidade.
Acordava cedo, ajudava no café e depois que os donos da casa saíam, cobria o turno de Cristiano que já me havia ensinado o suficiente para não ter grandes dificuldades na hora de atender alguém. Passado o dia na loja, quase sempre sem grandes preocupações, almoçávamos e conversávamos animosamente sobre o dia. Quando Alfredo não ficava, era Cris que ficava no lugar e passávamos a tarde conversando ou jogando videogame. À noite, não era diferente, com exceção de que ligava para minha mãe para dizer que estava tudo bem. Ela fazia questão que fizesse chamada por vídeo e visse que eu estava inteira. Já conhecia toda a família.
Era um clima tão agradável que sentia como se estivesse de férias na casa de um amigo, e isso se dava por conta da proximidade que tinha criado com Cristiano.
Sentia uma afinidade imensa por ele. Eu sabia quase tudo sobre ele e ele sobre mim.
Sabia que Cristiano tinha a mesma idade que eu, sendo mais novo somente alguns meses. Ele é um excelente jogador de videogame e ama tudo que é relacionado a tecnologia. Também tem uma pinta de nascença na costa, que ele mostrou certa vez. Seu rosto tinha sardas próximo no nariz e abaixo dos olhos, que ele dizia ser de família, já que a mãe era do mesmo jeito. Nunca dava para reparar por conta dos grossos óculos que usava, e que também era de família. Depois que ele comentou, pude perceber que era verdade.
Cristiano odiava o Natal, porque isso sempre remetia a um evento trágico que ele nunca chegava a comentar qual era. A família inteira não comemorava a data, ainda por cima. Nos acostumamos tão bem com a presença um do outro que nos sentíamos à vontade para fazer qualquer tipo de comentário idiota sem nos sentirmos julgados.
Mas, inclusive falar até das coisas que mais nos incomodávamos.
— Então, Téo...quer dizer que tu tinha alguém na tua vida. Terminaram de boa?
Pensei por um momento no que responderia, mas não era o tipo de assunto que queria inventar uma história diferente da que foi.
— Não.
Ele se sentou no balcão, girando um globo em suas mãos.
— E quer falar sobre isso?
Sentei ao lado dele, olhando o movimento de suas mãos sobre o pequeno mundo.
— Eu...peguei a tal pessoa na cama com outra.
Cristiano parou de girar o globo em seguida, encarando-me.
— Minha nossa, é sério?
Concordei com a cabeça.
— Mas que merd* – ele voltou a me olhar – sério, sério mesmo?
— Foi, e ainda por cima...me colocou pra fora.
Cristiano riu do comentário, mas sabia que ele não ria de forma pejorativa. Esse riso dele era quando via algo que o chocava muito, como nos vídeos da Internet que assistimos vez ou outra.
— E o que você fez? Incendiou a casa? Esfaqueou alguém?
— Que nada – ri soturna – só chorei e voltei pra casa sem nada. Deixei tudo lá.
— Entendo... – ele concordava – Faz tempo isso?
— Faz uns meses, por aí.... – Não sabia dizer exatamente quanto tempo tinha se passado desde o acontecido.
— E já conseguiu partir pra outra, ou não?
— Outra você quer dizer...
— Já conseguiu ficar com outras pessoas? – Cristiano me olhava curioso, levantando o que tinha em mãos para cima e para baixo.
— Sim, mas...Nada sério.
— Mas ao menos já conseguiu dar o primeiro passo – ele deu seu largo sorriso, que podia resplandecer qualquer ambiente – e digo uma coisa.
— O quê? – levantei uma das sobrancelhas.
— Tenho certeza que quem perdeu foi ele.
Pressionei os lábios, tentando conter o riso.
— O que foi?
— É que é engraçado ver você tentando me consolar...
Suas bochechas logo coraram, e ele deu um pulo do lugar onde estava.
— Quer sabe? Vamos falar de outra coisa – ele olhou para o relógio da loja – falta pouco pra fechar e está chovendo. Vamos fazer alguma coisa pra comer?
— Pra mim está ótimo – pulei junto com ele que, fingindo ser um cavalheiro, deu o braço para mim e eu, fingindo ser uma dama, segurei para juntos, fecharmos a porta.
*
Caía a noite na cidade mais uma vez. O clima ia do calor aterrador ao frescor que enchia os pulmões. Estava no quarto onde estava alocada, vendo algumas coisas quando Cristiano bateu na porta.
— Ei, Téo?
Virei para ele, mostrando que tinha notado já a sua presença.
— Bora sair mais tarde? Se você não tiver planos, é claro.
— Hm... – murmurava comigo, pegando na agenda que tinha em minha mochila – segundo minha programação, não tenho nada para hoje.
— Tá certo – ele sorria – mais tarde passo aqui para te buscar.
Saiu da porta do quarto, voltando para a sua. Desde que tinha chego ali, não tinha saído para nenhum canto com exceção das vezes que tinha que resolver alguma coisa, mas por conta de a localização da casa ser próxima a tudo, não precisava me afastar tanto do local.
Contava o fato de que permanecia com o mesmo costume de não gostar de sair de casa, isso quando meus amigos não me arrastavam para fora e me colocavam em alguma situação duvidosa, e isso parecia se repetir aqui.
Deu o horário marcado, e já estava pronta. Tinha tomado banho e colocado uma das minhas melhores roupas. Cristiano não disse para onde iríamos, dizia que era surpresa.
Os pais dele, vendo nossa movimentação de um lado para o outro enquanto assistiam o jornal, ficaram curiosos com aquilo.
— Vão sair pra algum lugar? – perguntou Cíntia para Cristiano.
— Vamos dar uma volta, nada demais – ele respondeu enquanto se ajeitava em frente ao espelho.
Ela olhava para nós com desconfiança, mas logo deu de ombros e voltou a olhar para a televisão.
— Sabe que tem que voltar cedo, né?
— Sei sim, mãe – ele respondia de antemão – não se preocupa.
Terminamos de nos arrumar e enquanto calcávamos os tênis, Cíntia foi à porta nos acompanhando até a saída.
— Juízo, viu? – ela dizia com os braços cruzados.
— Pode deixar – respondi a ela enquanto o seguia no caminho ao qual desconhecia.
Passamos pela praça principal próxima à sua casa, e via pela primeira vez a noite animosa daquela cidade. Pessoas em bando passavam de um lugar para o outro enquanto caminhávamos em direção ao endereço desconhecido, indo para lugares que jamais saberíamos, e o vento morno batia sobre nós.
— Você bebe, Téo?
— Não sou muito de beber...e você?
— Não na frente dos meus pais – ele dava um sorriso malicioso – tem algum problema em pararmos pra comprar alguma coisa?
— Sabe que topo qualquer coisa.
Ele manteve-se com o sorriso em seus lábios enquanto entrou no depósito que tinha na outra esquina. Depois de uma breve conversa com o vendedor, ele veio com um pacote de cervejas, abrindo logo duas, uma para cada um. Brindamos e dei uma longa golada na cerveja. Ela não estava bem gelada, mas o suficiente para refrescar naquela noite.
Após secarmos a latinha na caminhada regada pela conversa descompromissada que tínhamos, chegamos em frente a uma casa que tinham várias pessoas ao redor. Um jovem rapaz estava na frente e logo que viu Cristiano, o cumprimentou.
— Pensei que tu nem viesse – ele tinha uma voz grave, e logo virou para mim – e você?
— É uma amiga minha, tá passando uns dias lá em casa – ele dizia para o rapaz animado.
— Teodora – falei de antemão, estendendo a mão para cumprimenta-lo. Ele logo o fez.
— Fique à vontade, Teodora. Cris, te vejo depois.
Entramos no recinto, que estava abarrotado de pessoas, lembrando a última vez que saí em uma festa com um amigo e em como ela tinha terminado. Tocava uma música eletrônica ensurdecedora, jogos de luz no ambiente escuro sobre os corpos suados que dançavam em meio a tudo aquilo. Garotas se amontoavam com outras, garotos falavam aos gritos como os outros, todos bebendo, fumando cigarro ou outras coisas, como os narguilés que tinham nas mesas.
O ambiente me sufocava, tanto pelo acúmulo de pessoas como o clima abafado que perpetuava pelo número de pessoas amontoadas ali, e Cristiano logo percebeu.
— Vamos lá para fora, deve estar mais ventilado – disse ele segurando pela minha mão enquanto cortávamos caminho pela multidão.
Chegamos até a área, e mesmo que tivessem pessoas fazendo as mesmas coisas que no interior, o vento do lugar aberto era refrescante o suficiente para que eu pudesse respirar fundo e me sentir melhor.
— Que inferno de lugar é esse que você nos trouxe, Cris? – perguntei enquanto pegava mais uma cerveja. Era quase necessário após o sufoco passado.
— É a festa de aniversário do amigo desse amigo que estava na porta – ele passava a mão nos cabelos enquanto procurávamos um lugar para sentar – Não se tem muito o que fazer por aqui do que isso – ele tentava se justificar.
— É que não faz muito meu estilo de rolê – dava um gole na cerveja enquanto ele me acompanhava com a sua.
— Nem o meu – Cristiano confessava com um tímido sorriso – mas achei que seria legal fazermos alguma coisa diferente do que ficar só lá em casa...
— Mas está sendo legal – eu segurava seu ombro, retribuindo o sorriso que ele dava da mesma forma – já disse, qualquer programação contigo é legal.
Ele ria, e voltava a beber.
— Você é sempre gentil, Téo – ele olhava para o chão, esfregando as solas do tênis na grama recém-cortada do local – quem dera que todas fossem iguais a ti.
— É como você disse para mim – apontava com a cerveja para ele – quem perde são elas.
Ele ria envergonhado, e dava um gole ou outro na latinha em suas mãos. Terminei a minha e logo peguei outra. O calor se tornava cruel mesmo ventando.
— Então... – começava a puxar assunto – tá animado com a vinda de sua irmã?
— Eu, animado com a vinda da Catarina? – ele dizia sarcasticamente, e deu um longo gole na sua cerveja, secando-a de prontidão – Posso ser sincero?
— Deve.
Encarávamos as pessoas que seguiam fazendo os que esperavam de jovens de qualquer idade fazendo em uma festa.
— Nem um pouco.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 17/02/2024
Eita, Cris.
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