RaÃzes desconhecidas
Naquela noite, eu estava inquieta. Apesar de estar acomodada confortavelmente em lençóis limpos que cheiravam levemente a lavanda, minha mente não me deixava em paz. O dia tinha sido cansativo, mas ainda assim, não conseguia descansar.
Repassava comigo mesmo se tinha deixado passar algum ponto. Já tinha ligado para a minha mãe, ajudado na organização da casa, e pelo que aparentava, não estava metida em nenhuma seita estranha ou algo relacionado a isso. Não era esse receio que tomava conta da minha mente, e sim de que minha ida até aquele local ia ser infrutífera e voltaria para a minha cidade com o fracasso estampado em meu rosto da minha decisão precipitada ter mostrado exatamente o que era: uma loucura.
A noite estava quente como o dia todo tinha sido, mas estava bem mais ameno. O chiar dos grilos de fundo me causava estranhamento, já que era tão acostumada com o barulho de carros, conversas os mais variados tipos de sons. Ali, além daquilo e o vento que outrora batia na janela entreaberta e balançava a cortina feita pela dona da casa, nada ali tinha. Talvez aquele silêncio resoluto estivesse causando esse fomento em meu peito, já que me via diante a mim mesmo, ponto que estava evitando o máximo que podia.
Fechei os olhos, e tentei relaxar. Sabia que estava cansada, mas minha mente não. Levantei e me apoiei no parapeito da janela que dava para o esplendoroso jardim da família.
Cíntia, a anfitriã, disse a mim que costumava receber jovens estudantes, casais a passeio, turistas, e nada costuma cobrar além da experiência de compartilhar ideias, e por conta disso, as pessoas, de alguma forma, se veem na obrigação de retribuir o favor. Entendi no momento que fui tão bem recebida por eles e seu filho, me tratando como se me conhecessem há muito tempo, e por conta disso me coloquei à disposição para ajudar na loja deles, função que não era diferente do que já fazia em minha cidade quando ainda trabalhava.
Não dava para ver bem as árvores, arbustos e tudo mais que consistia no espaço devido à escura noite sem estrelas, mas a brisa era mais fresca do lado de fora, suficiente para que me sentisse bem melhor e me desligasse do que tanto me incomodava: meu pai.
Eu não podia mudar quem eu sou por uma pessoa que sequer conheço, e outro ponto...Eu gostaria dele? Ele seria uma boa pessoa ou seria um grande babaca que seria melhor eu nunca ter conhecido? Não adiantava de nada questionar comigo mesmo se ele gostaria de mim. Gostando ou não, eu ainda estaria ali e ainda seria filha dele e ele meu pai, e nada disso poderia ser mudado.
Vencida pelo cansaço, voltei para a cama e finalmente consegui dormir.
*
— Bom dia, Téo – disse Cíntia assim que me viu chegando na mesa – conseguiu dormir bem?
— Sim, obrigada por perguntar – respondi assim que me sentei. Alfredo me olhou de relance, dando um amigável sorriso. Cristiano ainda não tinha aparecido.
— Você é muito educada, Téo. Sua mãe te deu uma ótima criação – ele dizia satisfeito, passando a ponta dos dedos em seu bigode.
— Ah, que isso... – concordei com a cabeça, rindo sem graça enquanto servia o café para mim. Comentários sobre mim sempre me envergonhavam.
— Você tem irmãos? – Cíntia perguntava enquanto disponha o pão fresco na mesa.
— Não, só eu de filha mesmo.
— Sua mãe não quis outros filhos ou ainda não teve a oportunidade de ter mais um? – ela continuou a perguntar.
— Ela disse que não teria tempo para cuidar de mais uma criança...
— Entendo – Alfredo concordou com a cabeça – ela não estava errada.
— Mas também não sinto falta, pra falar a verdade – continuava – sempre viveu bem só eu e ela.
— Isso é maravilhoso – Cíntia dizia maravilhoso – que a família se dê tão bem assim.
Continuamos a tomar o café sem mais tocar no assunto. Cristiano chegou logo depois, com os olhos quase fechados. Aparentava ter passado a noite acordada, possivelmente jogando.
— Dia – disse ele sentando ao meu lado, apoiando a cabeça sob seu braço, sonolento. Os pais o olharam com reprovação.
— E você, Cris? É único?
— O quê? – ele respondeu aflito, pulando de sua cadeira – Time? Pro jogo? Vamos, vamos sim, com certeza.
Comecei a rir, negando com a cabeça e dando um último gole no café.
— Não – Cíntia voltou a falar – temos outra filha, ela é mais velha.
Levantou-se e foi até seu telefone, tocando na tela até mostrar uma foto dos quatro junto, e essa garota no meio.
— Ela chega esses dias de viagem – ela dizia animada – você vai adorar conhece-la. Olha como ela é linda!
Continuei olhando a foto em que ela estava no meio. Devia ser antes da viagem que ela tinha feito. Eles estavam em um aeroporto, sorrindo, menos ela que dava um sorriso ameno. Tinha a impressão de que ela estava incomodada com alguma coisa.
Senti meu rosto corar em imediato, concordando com a cabeça sem dizer mais nada.
— Bem, meninos, vocês vão me dar licença – Alfredo disse ao se levantar – que eu tenho coisas pra cuidar hoje. Cíntia?
— Já estou indo, querido – ela se levantou e beijou a cabeça do filho, afagando meus ombros – Juízo vocês dois.
— Pode deixar... – Cristiano concordou com a voz sonolenta.
Assim que saíram, perguntei a ele.
— Passou a noite jogando?
—Já me conhece tão bem assim? – ele deu um sorriso preguiçoso, tomando o café.
— Sou uma pessoa que supõe bem as coisas – dei com os ombros. Já tinha criado simpatia por Cristiano desde o primeiro momento, e esperava que assim continuasse.
— Estou vendo... – ele bocejava pausadamente – Nossa, estou morto hoje.
Levantei e fui até a sua cadeira, com seu olhar seguindo meus passos.
— Fazemos o seguinte...Eu cubro seu serviço, e você volta a dormir.
— Tá falando sério? – seus olhos brilharam de imediato.
— Sim – bati em seus ombros – ainda estou te devendo o favor de estar aqui, não é?
Ele sorriu como uma criança que recebia seu doce preferido. Ficara tão animado que se levantou e me abraçou sem pensar duas vezes.
— Nossa, Téo, não sei como te agradecer! – sua voz mostrava a excitação latente – Já não aguento essa rotina de acordar cedo...
— Não vai se acostumando mal, viu? – pisquei para ele, bem-humorada, o que ele retribuiu do mesmo jeito, jogando para trás. Tanto ele quanto eu rimos da situação.
— Qualquer coisa, é só me chamar, tá bom?
— Beleza.
A manhã tinha passado sem grandes preocupações, mas passara rápido. Acabara me entretendo com todos os objetos da loja que nem tinha visto que estava perto da hora do almoço. Acordei Cristiano quinze minutos antes dos pais dele chegarem, tempo suficiente para que ele tomasse banho e estivesse desperto o bastante para parecer que estava a pé por mais tempo.
Conforme eles chegaram, pareciam não ter desconfiado da nossa pequena trapaça, que confirmamos com olhares que só cúmplices podem dar um para o outro. Alfredo, que era o que comandava a cozinha, havia preparado um peixe assado próprio da região, com acompanhamentos que ainda não tinha visto. Ele dizia que era regional, e que deveria experimentar.
Acabei adorando aquilo mais que gostaria.
— Nunca tinha tomado açaí com essas coisas. É maravilhoso.
— Consumimos açaí assim por aqui – Alfredo dizia animado – se quiser, amanhã tem mais.
— Se não fosse pedir muito... – respondi, receosa. Achava que estava pedindo demais daquela acolhedora família.
— Não se preocupe – ele negou com a cabeça – fazemos questão. Nossos meninos não gostam, então quase não tomamos, o que é uma pena.
De fato, Cristiano não tinha sequer feito menção em tocar na iguaria.
— O que mostra que você definitivamente suas raízes – Cíntia comentava – isso é ótimo, não?
— É...
Assim terminamos o nosso almoço, seguindo com a rotina que me esperava pelo resto do dia.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 16/02/2024
Aguardo o encontro com o Tadeu.
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