Montéquios e Capuletos
Esperava por meu pai na parte de fora da casa quando Cristiano se aproximou. Cara cansada, barba por fazer e cabelo bagunçado. Não o via há dias, mas, parecia que não tinha contato com ele há semanas.
— Ei – disse assim que o vi, e, para minha surpresa, ele se sentou do meu lado. Bocejou e coçou os olhos, parecendo muito cansado.
— Vai sair com seu pai hoje? – era a primeira vez que Cristiano falava comigo depois de tudo aquilo.
— Sim, nós... – pigarreava de leve – Vamos almoçar e dar uma volta.
Ele assentiu com a cabeça, pressionando os lábios.
— Deu tudo errado na competição – ele riu com sarcasmo – a nossa equipe foi completamente humilhada.
— Sua mãe falou...Sinto muito, Cris.
— Não sinta – ele cerrou os olhos, e mordeu o lábio inferior, pensativo – foi erro nosso. Talvez se a gente tivesse treinado um pouco mais juntos...
— Pelo menos vocês tentaram. Muita gente nem tem coragem de ir lá e fazer, não é?
Me sentia melhor dele estar falando comigo, mesmo que estivesse com o semblante tão triste.
— Me desculpe por não ter sido tão parceiro esses tempos – ele engoliu em seco e continuou, suspirando cansado – mas, isso era muito importante, e eu coloquei tudo de mim pra no final nem dar certo.
— Não sei se serve de alguma coisa, mas... Cris, eu particularmente fiquei feliz por você – concordei ao pressionar os lábios – de ter ido fazer uma coisa que goste, mesmo que não tenha dado certo dessa vez.
Ele parou por um instante, e concordou com um sorriso tímido.
— Serve sim, Téo. Obrigado.
Ficamos em silêncio por um tempo. Cristiano balançando as pernas devagar enquanto eu olhava para a rua.
— Se não tiver nada pra fazer na sexta, podemos sair? - ele me olhava com um sorriso de canto.
— É claro, Cristiano – respondi no mesmo tom – mas, me faz um favor?
Levei minha mão até seu rosto, tocando naqueles pelos pontudos.
— Tire sua barba – fiz uma careta de desagrado – você fica mais bonito sem ela.
Ele se prestou a rir, balançando a cabeça.
— Sim, senhora.
O carro que esperava chegou em seguida disso, descendo o vidro e acenando para nós.
— Boa sorte, Téo – ele logo se levantou, se despedindo de mim.
Já Tadeu abriu a porta para que eu entrasse, mesmo que eu negasse em todas as vezes, e deu a partida.
— Bom dia! – dizia ele bem-humorado – Como foi o final de semana?
Mil e uma coisas vieram na minha mente ao mesmo tempo, e logo senti minhas bochechas queimarem, desviando o olhar para o lado de fora.
— Foi legal – era o que podia dizer.
— O meu foi um inferno – ele fechou a cara em seguida, virando a esquina – pior do que ouvir um leiloeiro passar duas noites gritando no meio de um monte de gente é ouvir Elisa surtando no pé do meu ouvido junto com minha mãe. Estou ficando doido – ele cerrou os dentes – mas, sou mais forte que isso.
— O que aconteceu? – perguntava tentando não rir da sua cara de ódio misturado com indignação.
— Primeiro que sua mãe falou que estou fazendo tua cabeça pra ficar e que ela vem te buscar na marra, aí é lavação de roupa suja de um lado e de outro – dizia ele entre os dentes – ela fala coisas que não concordo e ela diz que eu sou um mentiroso.
O que não chegou a me surpreender, já que ela tinha dito isso pra mim. No caso, eu só ignorei.
— Mas, eu não quero saber do que ela tem a dizer – Tadeu virava mais uma vez, dessa vez pegando um caminho mais longo – você está gostando de ficar lá na Cíntia com os meninos?
— Gosto muito de lá, de verdade. São pessoas maravilhosas.
— Você teve muita sorte de ter os encontrado, Teodora – ele concordava com um aceno, ainda sério – confiaria minha vida a eles, mas...
Ele deu uma breve tossida antes de continuar.
— Não pensa em passar uns dias lá em casa? – perguntava me olhando de relance – Pode chamar os meninos. Tem muito espaço lá.
Dessa vez eu que tossia pensando nas possibilidades
— Eles não fazem muito o estilo de sair de casa... – e achava engraçado como ele falava como se fôssemos crianças indo pra um lugar passar férias.
— Tem tanta coisa pra fazer lá, Teodora – seu semblante ainda era fechado – tem a piscina, os cavalos, trilha... Você já andou de cavalo? – neguei com a cabeça – Não? Como não? Então eu vou te ensinar.
— Eu até penso, mas... O senhor vai ter tempo?
— Eu já dei um jeito – ele deu com os ombros – se quiser só passar o dia e depois ir dormir lá com eles... Você que sabe. É como se sentir mais confortável.
Assenti que estava tudo bem assim.
— Vamos no restaurante de um amigo meu. – Ele apontou para o horizonte – fica logo ali. Tenho certeza que vai gostar de lá.
Paramos em frente a um lugar requintado, com cadeiras e mesas rústicas disposta ao redor do lugar. Parecia ser realmente muito agradável. Tadeu, abrindo caminho, seguiu para dentro do lugar, cumprimentando um senhor que, ao perceber a nossa presença, nos cumprimentou com um sorriso no rosto e um caloroso aperto de mão.
— Esse que é o homem – ele o abraçou em seguida e estendeu a mão para mim, sorridente – e você é a...
— Teodora – respondia timidamente.
— É minha filha – Tadeu pigarreou antes de continuar – Veio passar uns dias aqui comigo.
O homem emudeceu por um instante como se perguntasse se ouviu certo, mas nada disse, e voltou a sorrir novamente, educado.
— Já separei o lugar de vocês.
Seguimos até o lugar que ficava em uma área notavelmente mais reservada do local, e Tadeu fez o pedido enquanto eu encarava a paisagem ao nosso redor. Tinha o ar de fazenda como a casa de Tadeu, mas com toques sofisticados, assim como os carros que estacionavam ali e as pessoas que desciam dele. Comecei a me questionar se deveria ter me vestido melhor para tal ocasião.
— Então – Tadeu tossiu de leve antes de falar, chamando minha atenção – tracei um roteiro para fazermos hoje. Consiste basicamente em darmos uma volta aqui por perto, e pro almoço... Pedi algo bem regional porque a Cíntia comentou comigo que você gostava – e voltou a me olhar sério – É do seu agrado?
— Bem... – franzia as sobrancelhas – pra mim qualquer coisa está ótima, de verdade.
— Ainda bem – Tadeu esfregou as mãos uma contra as outras – estava com receio de ter me precipitado.
Ele parecia estar nervoso. Olhava para baixo, mexia as mãos, engolia em seco olhando o cardápio, e, ao perceber que eu o olhava, tentou disfarçar, mas sem sucesso.
— Mas pro senhor está bom esse roteiro?
Ele levantou as sobrancelhas, surpreso pela minha colocação.
— Digo, é isso mesmo que quer fazer? – perguntei mais uma vez.
— Achei que seria bom – ele falava em um tom mais desanimado – você conhecer um pouco daqui. Não é do seu agrado, então? Se quiser...
— Não – negava mais uma vez – o que o senhor quiser fazer pra mim está ótimo.
Mais uma vez, aquele silêncio, mas era incômodo. Era como se tivéssemos muito a falar, mas não sabíamos como fazer isso.
— Então... – ele engolia em seco ao se virar pra mim – Você já está fazendo faculdade?
Neguei com a cabeça.
— Por quê? – suas sobrancelhas se cerravam, como se não tivesse entendido o motivo – Está tentando entrar em alguma muito concorrida, então?
— Não é que não tem nenhum curso que me atraia – dizia enquanto mexia com os lenços em cima da mesa – preferi ir trabalhar logo...
— E o que você fazia lá, então?
— Ah, nada demais – dei de ombros – eu era atendente em uma lanchonete, aí...
— E sua mãe permitia que você fizesse esse tipo de coisa? – dizia ele com desdém, mudando completamente o tom.
— Por que ela iria negar? – levantava uma das sobrancelhas, me questionando.
— Deixar com que se submetesse a esse tipo de coisa – ele fazia uma cara de desaprovação – parece até que vocês passavam necessidade.
Ri com sarcasmo, balançando a cabeça em negativa. No fundo, já era de se esperar esse tipo de coisa.
— Eu acredito que – apoiei meus dedos contra a mesa, o encarando de volta – isso é uma coisa que só diga respeito a mim.
Ele me encarava como se não tivesse entendido o que tinha dito.
— Você jura que eu permitiria que você – ele me olhou sério – fizesse isso enquanto pode ter tudo o que quiser?
— Mas nós não tínhamos tudo, Tadeu – dizia no mesmo tom – o senhor sabe muito bem como é minha família.
Parece que saber daquilo o ofendia ainda mais.
— Bom, pelo menos aqui você não vai se preocupar em limpar mesa dos outros nem nada do tipo... – e se voltou a me olhar mais uma vez – Pelo menos você sabe que não precisa.
Não queria falar mais nada depois disso. Só balancei a cabeça em negativa de novo, deixando minha mente me levar pra qualquer outro lugar, e, ele percebendo, voltou a puxar assunto.
— Sua avó e sua tia querem vir te conhecer.
Olhei-o com seriedade, franzindo o cenho.
— Sério?
Ele concordou com um aceno, e cruzou as pernas, deixando sua pose mais confortável.
— Elas querem vir semana que vem, e é até melhor porque, com a Patrícia vindo, que no caso é sua tia – ele gesticulava ao falar – ela me dá o apoio direto e aí todos teremos mais tempo...
Logo lembrei do que Catarina comentou.
— Qual é o problema que tem entre sua mãe e a Catarina?
Ele ia continuar a falar, mas parou no mesmo instante, visivelmente pego de surpresa.
— Ela te contou o que aconteceu? – neguei, e ele deu um riso contido – Não? Mas pra tu ter dito isso, ela deve ter dito que odeia todos nós, tenho certeza.
Nisso ele estava certo. Tadeu gesticulou para que o garçom viesse, e pediu uma água com gás saborizada. Para mim, apenas água normal.
Assim que chegou, ele nos serviu, agradeci e ele continuou.
— Não sei se já percebeu, mas, aqui, se é conhecido por sua família, não por quem tu é no individual... – Ele deu um gole na água, a saboreando – Você é uma Monteiro, e Catarina é uma Martins, certo?
Assenti com a cabeça, e ele continuou.
— Os Martins... – ele fazia uma breve pausa pra voltar a falar – Não tem uma boa fama entre as pessoas porque consideram eles loucos demais. Os pais da Cíntia foram presos, o pai dela era ativista político, ela e o irmão seguiram o mesmo caminho, eram uns hippies largadões. Inclusive, foi numa dessas reuniões que ela conheceu o Alfredo, que era líder sindical na época...
— Eu achei interessante – disse, cerrando as sobrancelhas – O que isso tem de mais?
— Estamos falando de coisa de trinta anos atrás nesse lugar, Teodora – ele respondia em um tom conciso – se isso até hoje não é bem-visto até hoje, quem dirá antes?
Concordei com um aceno, lembrando das coisas que minha tia vez ou outra comentava comigo.
— Só piorou depois que o Caetano... – ele pressionou os lábios, engolindo em seco – Você sabe o que aconteceu, né? – assenti mais uma vez – Foi no dia do velório que teve a discussão entre elas.
Olhei curiosa, e tomei um gole d’água. Ele logo fez o mesmo.
— Ela era muito apegada com o tio – Tadeu passava a ponta do dedo médio na borda do copo – ele que criou ela, basicamente. Aí sua avó, que não é conhecida por ser a pessoa mais...digamos... sensível, foi até lá e disse que ele tinha feito um favor pra família em ter se matado porque ele era muito problemático e dava muito trabalho.
Ouvi aquilo sem reação, e ele deu com os ombros, como se não esperasse nada de diferente vindo dela. Só depois que realmente compreendi o absurdo que tinha ouvido que consegui expressar meu descontentamento de saber disso.
— Aí Catarina foi pra cima dela, elas começaram a se ofender e fomos expulsos de lá – ele deu com os ombros, voltando a se recostar mais na cadeira – fim da história.
É um bom motivo para que não se gostassem.
— Sempre me dei bem com eles, não importava o que meus pais diziam ou o resto da família – Tadeu voltava a falar – Caetano era um grande amigo meu e, além de considerar muito a Cíntia, tenho ainda mais gratidão por ela e sua família cuidarem tão bem da minha filha enquanto não estou.
Me prestei apenas a concordar com a cabeça com o que ele dizia.
— Mas, não se deixe levar por brigas passadas, Teodora - ele me encarava por entre as sobrancelhas cerradas – estamos em outro momento agora, e tenho certeza que vocês vão se dar muito bem.
— Eu espero – engolia em seco. Não que eu esperasse validação ou que me amassem, mas, eu torcia do fundo do meu coração que as coisas realmente dessem certo entre nós.
O almoço chegou, e estava realmente maravilhoso. De longe, uma das melhores coisas que já havia comido na vida. Assim que terminamos, seguimos no carro e fomos conhecer alguns pontos turísticos, como ruínas e locais históricos ali de perto. Tadeu gostava muito disso e falava com afinco, como um guia. Me prestei a ouvi-lo atentamente.
— Meu bisavô ajudou a construir isso aqui – ele apontava para um ponto antigo na cidade – meu avô trabalhou aqui e meu pai o ajudava também quando era criança.
Entramos no mercado, onde pessoas passavam de um lado para o outro, falando alto, oferecendo os serviços. Caminhamos em meio aquela multidão até que ele parou em um box específico, falou um pouco com o vendedor, que entregou para ele um saco com um peixe inteiro.
— Está aqui o almoço de amanhã – ele me mostrava satisfeito, e concordei com a cabeça.
— O senhor será o cozinheiro?
— Não mesmo – disse Tadeu fazendo uma careta de desagrado – sou um péssimo cozinheiro. Vou deixar pra quem entende, é melhor.
Seguimos para fora do local, longe de todo o barulho.
— Eu gosto de pescar – apontou para o peixe na sacola – você já pescou alguma vez? Também não? O que você gosta de fazer?
— Eu... – suspirei baixinho, me fazendo a mesma pergunta – Não sei, eu gosto de assistir séries. Assisto muito lá em casa com minha mãe e minha tia, inclusive, ela que me arrastou pra esse mundo.
— Está aí uma coisa que quase não vejo – ele coçou o rosto devagar – Me recomendaria alguma?
— Várias, pra falar a verdade – tentava esconder a animação de falar sobre esse assunto – depende do que o senhor goste de assistir...
— Vou confiar no seu gosto – Tadeu deu um sorriso amigável – pra escolher uma coisa bacana pra assistirmos juntos.
Assenti com a cabeça, e entramos no carro. O caminho de volta foi tranquilo. Seu telefone não havia tocado nenhuma vez e nem o vi pegar, o que me fez questionar se ele tinha realmente o destruído ou se simplesmente resolveu ignorar o que tinha que fazer pra poder ficar comigo.
— Consegue escolher até amanhã uma?
— Vou tentar.
Parou em frente da casa, abriu a porta pra mim e agradeceu pelo dia. Eu também agradecia por aquele momento em que eu podia o ver além de só um nome.
— Te ligarei assim que sair de casa – disse ele voltando pro carro – se cuide.
Acenei de volta pra ele enquanto voltava pelo caminho de sua casa, e eu para o lar que me acolheu. Assim que entrei, não me deparei com ninguém, então segui até o jardim, onde sentei e respirei o ar fresco que vinha das árvores, e as cigarras que começavam a cantar de fundo me fazendo companhia.
O vento bateu suave sobre mim. Era tão bom.
Eu gostava de estar ali.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 10/03/2024
Família complicada.
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