CapÃtulo 3 - A nova realidade
Capítulo 3 — A nova realidade
Os dias de folga passaram de forma morosa naquela semana. Em casa, sem trabalhar, com todo tempo do mundo para pensar em todo tipo de coisas, Juliana dedicava boa parte desse tempo jogando vídeo game, mas por vezes acabava relembrando aqueles instantes, e quando se dava conta, estava pensando em Flávia.
Nos primeiros dias Juliana simplesmente pensava nela, sem se preocupar com os motivos que fizeram aquela mulher não sair de sua cabeça. Na semana seguinte ela voltou a trabalhar, ainda com o braço imobilizado, estava voltando à rotina aos poucos. Assim que entrou na empresa, aquela noite tornou-se vívida mais uma vez. Sentiu-se estranha por desejar ver aquela mulher novamente.
Aquela sensação a perturbou, Juliana nunca havia se relacionado com outras garotas, mas já havia ficado confusa com seus sentimentos por outra mulher em outras ocasiões. Confundia com amizade ou até mesmo com admiração.
O que ela não sabia era que o processo de aceitação já havia começado há muito tempo, todo aquele desinteresse pelos meninos de seu círculo social, seu ostracismo, o relacionamento morno e sem graça com Anderson, e agora o pensamento constante em Flávia. Estava ficando difícil lutar contra o inevitável.
Estar se sentindo atraída por uma mulher já era um problema para Juliana, e o objeto de seu desejo sendo uma fugitiva da polícia que assaltou seu local de trabalho então, parecia uma loucura. Riu de si mesma.
A vida seguia, os dias foram se passando, a rotina voltando no normal, mas as coisas não seriam mais as mesmas para ela.
Em Pelotas, Flávia tentava se acostumar com aquela rotina totalmente diferente, uma cidade estranha, um quarto estranho. Estava numa pensão na periferia, evitava sair de casa, ia ao supermercado à noite, comprou livros e revistas num sebo, ficava atenta aos noticiários. Entrava em pânico quando alguém puxava conversa ou a olhava nos olhos.
Conseguiu um documento de identidade falso, estava procurando empregos pela cidade.
Criou a rotina de sair cedinho para correr, era o único momento que se sentia livre. Depois sentava no banco de uma pequena praça bastante arborizada, o sol não penet*ava através delas, apreciava a sombra e a escuridão. O ferimento no pescoço já não incomodava tanto, começava a cicatrizar.
Numa dessas manhãs, correu até a praça e sentou-se num banco. Observava as pessoas apressadas andando na área comercial.
Por complô do destino, naquela manhã viu vários casais caminhando nas proximidades, sentiu uma necessidade sem tamanho de rever aquela garota que povoava seus pensamentos há duas semanas.
Como faria para vê-la de novo? Não poderia colocar em risco sua liberdade, não poderia simplesmente aparecer e dizer que andava pensando nela, achava tudo absurdo demais.
Voltou correndo para a pensão, tomou um banho, ligou o rádio e deitou-se. Uma música com letra romântica que falava sobre estar longe de quem se ama estava tocando. Estava suscetível a qualquer coisa com apelo romântico, sentia-se frágil, teve vontade de chorar, parecia que estava com o coração entalado na garganta, desejou estar na fazenda onde cresceu em Minas.
Flávia estava prestes a completar trinta anos, sabia que sua vida estava dando uma guinada, mas não sabia em qual direção, tinha certeza que havia ido num caminho sem volta e que sofreria as consequências. Nos três anos que estava em Florianópolis não teve nenhum relacionamento que durasse mais que quatro meses, sua última namorada havia ficado em Minas Gerais, e ninguém havia balançado seu coração na Ilha da Magia.
Tinha um semblante cansado, cabelos castanho-escuros longos caindo sobre os olhos para se esconder de tudo e todos.
Era amante das coisas da terra, bióloga de formação, queria mesmo era trabalhar com as mãos na terra, sonhava em ter uma empresa de jardinagem. Juntava dinheiro há muito tempo para realizar este sonho, enquanto trabalhava num monótono emprego de auxiliar administrativo numa empresa de importações.
Um ano antes daquela noite, duas bombas tiraram seu chão. Sua mãe havia sido diagnosticada com câncer e a empresa onde trabalhava fechou as portas. Gastou todas as economias com o tratamento da mãe e com as idas e vindas para o interior de Minas para visitá-la.
Oito meses depois do diagnóstico e de um forte tratamento, sua mãe faleceu. Flávia se viu com seus sonhos despedaçados, sem emprego, sem dinheiro, com dívidas, e sua rocha havia partido. Passou o último ano procurando emprego e recebendo várias negativas ou conseguindo coisas temporárias, o desânimo estava dando lugar ao desespero.
— Nada hoje? — Ricardo perguntou do quintal vizinho, assim que Flávia entrava pelo portão da sua casa, após mais um dia exaustivo de procura de trabalho.
— Como sempre. — Respondeu com cansaço.
— Hey, Flávia, aparece aqui mais tarde, vem tomar uma cerveja, acho que posso arranjar um serviço temporário para você. — Disse Ricardo.
— Trabalho? Em qual área?
Ricardo riu.
— Venha aqui depois e te faço uma proposta irrecusável.
***
Juliana havia terminado com Anderson há quatro meses, naquela noite do término não houve briga nem discussão, mas o garoto não aceitava o fim, passou algum tempo insistindo para Juliana repensar a decisão.
— É por que ainda não tenho um carro? Meu pai disse que vai me dar um carro ano que vem. — Anderson insistia com os olhos molhados no sofá da casa dela.
— Não tem nada a ver com carro, na verdade não tem nada a ver com você, eu acho que as coisas ficaram mornas demais, eu não sinto nada ao seu lado. — Juliana respondeu, sem jeito.
— Não fala assim, Juli, você sabe que te amo, sempre te tratei tão bem, e vai dizer que nosso sex* não é bom?
— Não se sinta ofendido, ok? Mas até isso eu tenho achado morno demais, eu não acho justo com você continuar a relação, por isso quero terminar tudo. Mas quero continuar sendo sua amiga, continuar saindo com você, seu irmão e Claudia.
— Não faz isso comigo, Juli... — Anderson chorava, acariciando seu rosto.
— Olha só, vamos dar um tempo, se daqui alguns meses a gente sentir que ainda se curte, daí a gente volta, ok?
— Tem que ter algum motivo, vamos lá, me fala o que aconteceu.
— Não aconteceu nada, eu só não te amo mais.
— É por que não faço oral em você? Eu posso começar a fazer, se você faz questão.
— Pare com isso, Anderson, você está falando besteira.
— O que você quer então?
Juliana ficou um instante em silêncio, se dando conta que Anderson não poderia nunca dar o que ela queria.
***
Juliana morava a três quadras do mar, gostava de ir à tardinha até à orla caminhar um pouco, depois sentar numa mureta e olhar o mar, era seu momento de paz.
Tirava seus tênis e desenhava na areia com os dedos do pé.
Já havia anoitecido, ela continuava com o olhar perdido no horizonte. Entre as preocupações do dia-a-dia imaginava como seria se reencontrasse Flávia, não saberia o que falar.
“Ela nem deve lembrar de mim.”
O celular tocou no bolso do casaco vermelho de moletom. Não reconheceu o número, o DDD era do Rio Grande do Sul.
Fim do capítulo
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